Por Mauro Mueller / Quantum Dox
Uma das histórias mais antigas da humanidade. Um rei luta contra monstros terríveis, desce ao mundo dos mortos e retorna com um segredo que pode torná-lo imortal. De acordo com listas de reis encontradas na antiga Suméria, Gilgamesh foi o quinto rei da era pós-diluviana. Alguns historiadores acreditam que este rei realmente existiu, nos séculos XXVIII ou XXVII a.C. A ele também são atribuídas características de gigante, semi-deus, ou até de uma divindade digna de cultos e oferendas — mitos que se formaram ao redor de sua história, criando um verdadeiro legado lendário.
O fato é que a história, contada nos textos escritos em doze tábuas de argila em escrita cuneiforme (o primeiro sistema de escrita conhecido, criado pelos sumérios), constitui o que chamamos de Epopéia de Gilgamesh, considerada a mais antiga obra literária da humanidade. Essas tábuas foram datadas de 2.200 a.C. A primeira parte do poema relata grandes feitos e aventuras; a segunda parte descreve a descida de Gilgamesh ao mundo dos mortos, onde ouve a história do grande dilúvio; e a terceira parte é mais enigmática e simbólica.
Nos textos, Gilgamesh é descrito como um ser divino, parte humano, gigante e extremamente poderoso. Por ser tão poderoso, ele acabava entediado e atormentava a população de Uruk, provocando brigas nas ruas e exigindo que as mulheres passassem a primeira noite de casamento com ele. Incomodado, o povo clama aos deuses por ajuda. Eles respondem: a deusa Aruru, criadora da humanidade, molda um homem do barro e o coloca em um campo próximo das muralhas de Uruk. Esse homem vive entre os animais, comendo e bebendo como um deles.
Os caçadores, incomodados com a criatura, pedem a intervenção do rei. Gilgamesh envia uma meretriz ao local para atrair o homem. Ela o seduz, e durante sete dias e sete noites eles se unem. A meretriz ensina a ele costumes da vida civilizada. Assim, o homem torna-se humano e adquire consciência e sabedoria. Ela então o conduz à cidade para encontrar Gilgamesh. Os dois se enfrentam, derrubando tudo ao redor, mas Gilgamesh vence. A luta gera respeito mútuo, e os dois tornam-se grandes amigos. Enkidu, como é chamado o homem, passa a ser companheiro inseparável do rei, que, agora mais calmo, deixa o povo em paz.
Os planos dos deuses pareciam ter dado certo. Gilgamesh e Enkidu partem para enfrentar Humbaba, criatura que habitava a floresta de cedros e “falava fogo e respirava morte”. Eles o matam e trazem a cabeça como troféu. Ishtar, deusa do amor e da guerra, impressiona-se e pede Gilgamesh em casamento. Ele recusa, pois conhece o destino cruel dos que aceitaram tal proposta. Enfurecida, Ishtar pede ao pai, Anu, que envie o Touro do Céu para destruir o reino de Gilgamesh. Ela ameaça libertar os mortos sobre os vivos, caso não seja atendida. Anu cede, mas Gilgamesh e Enkidu derrotam o touro. Enkidu corta uma pata da criatura e a arremessa contra a deusa, zombando dela.
Diante disso, os deuses decidem que um dos dois amigos deve morrer. Enkidu adoece, enfraquece e morre. Gilgamesh, desolado, chora ao lado do corpo até ver vermes saindo do amigo. Só então o sepulta. Veste trajes de luto feitos com pele de leão e passa a vagar. Além da tristeza pela perda, ele se dá conta da própria mortalidade e parte em busca da imortalidade.
Em sua jornada, ouve falar de Uta-Napíshti, o único homem a conquistar a imortalidade. Para encontrá-lo, precisa atravessar as montanhas de Shamash (o deus Sol), encarar o homem-escorpião, guardião entre o mundo dos vivos e dos mortos, e cruzar o rio da morte. Chegando a uma taberna, a taberneira tenta convencê-lo a desistir, dizendo que ele deveria aproveitar a vida. Mas Gilgamesh insiste. A mulher, então, lhe ensina a encontrar o barqueiro que o levará até Uta-Napíshti.
Diante do homem imortal, Gilgamesh pergunta sobre o segredo da imortalidade. Uta-Napíshti responde com uma história: os deuses decidiram destruir a humanidade com um dilúvio. Enki (ou Ea), o deus da sabedoria, avisou um humano e ensinou a construir uma grande embarcação para salvar sua família e casais de animais. Quando o dilúvio cessou, o barco encalhou num monte. Uta-Napíshti soltou aves: a pomba e a andorinha retornaram; o corvo não, indicando terra firme. Uta-Napíshti fez então um sacrifício aos deuses, que se juntaram às oferendas “como moscas”. Enlil, que idealizou o dilúvio, enfureceu-se ao saber que alguém sobreviveu. Os deuses decidiram, então, tornar Uta-Napíshti imortal, mas isolado dos demais humanos.
Gilgamesh, frustrado, compreende que não pode obter a imortalidade. A esposa de Uta-Napíshti revela-lhe o segredo de uma planta capaz de restaurar a juventude. Gilgamesh a colhe nas águas da morte, mas, distraído, vê uma serpente devorá-la. O animal rejuvenesce, trocando de pele, enquanto Gilgamesh perde sua chance.
Ele retorna a Uruk e, ao contemplar as muralhas da cidade, diz ao barqueiro para também contemplá-la. Percebe, então, que seu legado viverá além de sua morte. Supera, assim, o drama da finitude.
Na terceira parte das tábuas, Gilgamesh e Enkidu estão jogando quando a bola cai num buraco que leva ao mundo dos mortos. Para provar sua lealdade, Enkidu desce até lá. Como ninguém retorna desse mundo, ele fica preso. Mais tarde, Gilgamesh consegue se comunicar com o amigo, que descreve o sofrimento dos mortos — sem prazeres, dependendo da memória deixada e dos rituais realizados por suas famílias.
A semelhança entre o dilúvio narrado na Epopéia de Gilgamesh e o episódio bíblico de Noé não é coincidência. Muitos estudiosos afirmam que o relato bíblico se inspira nas tábuas sumérias descobertas no século XX, em escavações da biblioteca do rei assírio Assurbanípal, na antiga cidade de Nínive. A tábua número 11 relata o dilúvio em detalhes. Sem dúvida, trata-se de uma descoberta essencial para entender os mistérios das civilizações mais antigas que o judaísmo.
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